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Amigos serão amigos


A circunstância não foi das melhores. O cara mais bacana daqueles saudosos tempos de brincadeiras na rua tinha falecido. Uma discussão besta no trânsito o tinha levado para o outro lado. Também, não se pode dizer que foi uma surpresa, afinal ele sempre era o mais encrenqueiro da turma, não levava desaforos pra casa. Trinta anos haviam se passado.
Naquela rua de pouco movimento, cujo final dava num terreno baldio gigante, conhecido como Lixão, mais de dez moleques brincavam diariamente. Futebol com gol caixote, pipa, taco, Super Trunfo, corrida de bike, queimada, vôlei e até basquete. 
Em seu auge, vinham meninos de outras ruas e bairros pra bater uma bola por aqueles lados. As atividades começavam bem cedo, e só acabavam quando anoitecia. Na época era relativamente comum faltar aenergia elétrica, e quando isso acontecia de noite, todos saíam também para rua, curtir a escuridão.
A vida tratou de acabar com a festa. Um se mudou, outro começou a namorar, alguns foram estudar longe. Pouco a pouco, perderam o contato. A rua deixou de ser sem saída, construíram o tal shopping prometido há décadas. Carros passando o tempo inteiro, residências convertidas em comércio. Triste de se ver.
Recentemente, criaram um grupo numa rede social, e voltaram a se falar. Estavam tentando marcar um encontro, quando a notícia do falecimento veio como uma bomba.
Encontraram-se no velório, esposas e filhos. Abraços saudosos misturados com a tristeza do momento. Lágrimas. 
Lágrimas que logo deram lugar aos risos, quando começaram a contar os causos de antigamente. Não tinham mudado nada, meninos em corpos de adultos, envelhecidos, mas no fundo todos iguais ao que sempre foram. O mulherengo, o craque de bola, o comilão, o engraçado, o fortão briguento de bom coração.
De uma hora pra outra todos estavam lá de novo, iguais, independente do sucesso ou fracasso de suas vidas. E perceberam o quão amigos amigos podem ser.
Na hora de fechar o caixão, despediram-se do colega querido. Que foi resolver brigar com outro valentão, só que esse estava armado. Quantas vezes esse seu jeito dele já não tinha salvado a pele da molecada...
Cada um voltou para sua família... Prometeram encontrar-se novamente, em um ambiente menos triste... Mas sabe como são essas coisas, promessas que muitas vezes ficam ao vento.

Tempos depois, em um final de semana qualquer, um deles conseguiu uma autorização da prefeitura para fechar a antiga rua por algumas horas. Senhores na casa dos quarenta anos se reuniram, e jogaram futebol na rua, tijolos marcando as traves. Já de noite, faltou energia no bairro. Foi apoteótico. Há quem diga que foi o antigo guarda da rua que lá de cima deu uma forcinha pra festa.

#amigos

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