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O mundo acaba daqui a uma semana




Foi o que disse o noticiário da TV. Algo sobre os pontos de Lagrange terem se desalinhado, numa típica distorção do espaço tempo. A gravidade tornou-se instável, e seria só uma questão de tempo até tudo sair flutuando por aí.
William Bonner aproveitou pra pedir a todos que não entrassem em pânico, e que aproveitassem os últimos dias para rever os entes queridos. Finalizou com uma piscadinha, e quebrou a Internet, com todos os digital influencers interpretando o ato como uma indireta para a Fátima Bernardes.
Nesse exato momento, os olhos da Tia Cidinha brilharam. Não com medo do inevitável fim.... não com desespero, muito menos com a tranquilidade das pessoas religiosas. Tia Cidinha tinha farejado a oportunidade. Faria a maior reunião familiar que a história dos Figueiredo Cavalcanti. E dos Souzas, teria, a contragosto, que chamar a família de seu marido, o Tio Zé. Mas ela mesmo faria tudo, como sempre, Tio Zé já estava naquela fase de só balançar a cabeça, queria mesmo que o deixassem em paz com suas palavras cruzadas.
Criou um grupo no whatsapp, e adicionou todos os envolvidos. Alguns tentaram sair assim que foram acrescentados, mas Tia Cidinha ficava chamando de novo, e de novo, até vencer todos pelo cansaço. Reservou o salão de festas do condomínio, não podia correr o risco de outro morador querer usá-lo em algum tipo de festa sem limites nem pudores, onde ninguém seria de ninguém, e roupas totalmente dispensáveis. Deu até um calor aqui....
As comidas ficariam por conta dos convidados, como era costume nas festas da família. Tia Lourdes traria seu famoso tender, se é que alguém vende tender no Juízo Final. Alguém sugeriu que a Dona Solange trouxesse suas lentilhas, mas acharam que não era o caso. O primo Augusto seria o DJ, com uma seleção especial de músicas sacras, e para as crianças um pula-pula extra grande, para chegarem bem perto do Céu.
A ala mais jovem pensou numa festa à fantasia: A Morte, Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse, Lúcifer, Trump, Bolsonaro, Caetano Veloso vestido de tanga de crochê, Lula no pedalinho do sítio. Desistiram apenas quando Tia Cidinha pegou pesado, alegando palpitações e um ataque cardíaco iminente, não queria passar os últimos dias da Terra numa cama de hospital. 
A data era algo a ser considerado também. Deveria ser alguns dias antes do Arrebatamento, para que houvesse tempo disponível para postarem as fotos no Instagram, com mensagens de paz e fé. Não podia ser muito cedo também, toda uma logística era necessária para trazer os parentes de fora, e teriam que vir de carro. Duvidou que os pilotos de avião estariam lá muito preocupados com a segurança. 
Tudo resolvido, só faltava o vô Josias. Pai do Tio Zé, fincou os pés em casa, de lá não sairia, ia ficar fumando charutos, enchendo a cara e aboliria de vez as fraldas geriátricas. Tia Cidinha foi pessoalmente tentar convencê-lo, mas foi enxotada a gritos e baforadas de fumo barato. Saiu chamando o velho de egoísta, onde já se viu uma desfeita dessa às vésperas de irmos todos ao encontro de Deus.... Ou do outro lá, vai saber. Tio Zé, resignado, só olhava.

No dia da festa tudo corria maravilhosamente bem. Tia Cidinha estava linda, toda de branco, tinha certeza que os Queiroz e Azevedo iam morrer de inveja. Literalmente. Recebia a todos com um sorriso comedido, e um abraço assim, nem muito efusivo, nem muito frio. Na medida certa.
Quando todos reuniram-se à mesa, bateu elegantemente com o talher na taça de cristal, gostaria de dizer algumas palavras, que havia exaustivamente ensaiado para parecerem de improviso. Quando foi abruptamente interrompida pelo primo Gabriel, que trouxe a palavras da salvação. Os pontos L4 e L5 de Lagrange se alinharam novamente, milagrosamente. Foi o próprio Bonner que deu a notícia, com uma baita olheira e uma garrafa de Old Eight na mão, Todos juram que fazia o dedo do meio para a Fátima, mas isso é só intriga de quem não tem o que fazer. Nada sairia mais voando por aí, o mundo estava salvo.

Dias depois, ainda contava-se o número de vítimas. Tia Cidinha havia esfaqueado, com a própria faca de cortar o peru, quase todos os membros da família, Gabriel foi o primeiro. Depois de tanto planejamento, não podia tolerar que o mundo não acabasse. Os Figueiredo Cavalcanti iam morrer sim, em grande estilo.

Hoje cumpre pena em Bangu I, dizem as más línguas que já cuida do cerimonial do CV. Tio Zé sobreviveu, e foi visto em Vegas tomando piñas coladas com o vô Josias. Que, a propósito, não precisa mais de fraldas,

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