Prostrado no sofá da sala, havia prometido a si mesmo não mais sair de lá. Assistiria todas as séries do Netflix, todos os filmes e documentários. Dormiria por lá mesmo, banho apenas eventualmente, tirar o pijama apenas quando não fosse possível receber em casa o que necessitasse para sobreviver. Bendita internet e seus aplicativos de celular.
Havia lido a respeito de uma doença que só existia na Suécia, crianças que aparentemente haviam desistido de viver. Será que era isso que tinha acontecido com ele? Desistido?
Dinheiro, não precisava mais. Tinha ganho um tanto, e guardado um pouco. Mais outro bocado de herança de seus pais, que já não estavam mais neste plano. Se pelo menos eles ainda estivessem, diriam-lhe o que fazer. Eles sempre disseram.
O Homem lembrou-se de como era impetuoso, insistente, Não deixava nada pra lá, não desistia fácil. Metia-se em encrencas por conta de seus ideais. Como eram tolos seus ideais. Mas os perseguia, implacavelmente. Perdeu as contas e quantas guerras lutou. Perdeu e ganhou. Feriu-se, sarou, ficou com cicatrizes. Quanto disso tudo podia ter sido evitado. Mas como sentia-se vivo.
Hoje em dia, rendeu-se ao politicamente correto, ao socialmente aceitável. O Homem evoluiu, serenou. Teriam tantos tombos feito-lhe manso? Passaria o resto de seus dias desinfetando suas mãos com álcool gel?
O calor da sala faziam-no suar sobre o sofá de couro, e o incômodo. juntamente com a pizza que havia feito seu estômago doer, e o episódio de Sense 8 que dizia "fear never fixed anything", causou algum efeito no Homem.
Relembrou todas as más decisões que tomou, as probabilidades que o fizeram percorrer o caminho que estava, e amaldiçoou cada uma delas. O acaso, que tirou dele as pessoas que mais amava. E resolveu que não ia deixar barato.
Nada mais de meios-termos, escolheria bem as mãos que iria jogar, mas quando jogasse, seria apenas de all-in. Ao inferno com o Azar, o Homem faria dele seu capacho. Daria a cara a bater, enfrentaria a Vida de frente, essa sádica que adora o sofrimento alheio. Ele era o Homem, o escolhido de Deus, havia nascido pra crescer e multiplicar-se, e nada ficaria em seu caminho.
E assim foi por um tempo. Trocando o Medo pela Coragem, prosperou relativamente. Contou com a ajuda da Sorte, que a cada jogada de dados deu uma força, um sopro milagroso. Enfrentou, e com isso mais surrou do que apanhou. Algo o movia a ganhar ou perder tudo. Tinha uma Fera dentro de si, precisava entender o que ela queria, como se livrar.
Esteve no limite por tanto tempo que nem percebeu o quanto podia ser vulnerável. Por pouco o Homem não acabou com a Vida e consigo próprio. Foi a Sorte.. A Crise dos Mísseis Cubanos? Evitada por uma carta favorável na última virada do baralho.
Mas Deus.... Sim, Deus não gosta que as coisas fiquem fora do 50% de chances para cada lado.
E numa dessas, como era de se esperar, o Homem perdeu. Praticamente tudo. Adoeceu, caso perdido. Passaria o resto dos dias em uma cama, receberia eventualmente a visita de poucos, porém fiéis, amigos. Consumido de dentro pra fora pela Fera.
Naquela noite esteve febril. Teve pesadelos. Calor e frio, corpo coberto de suor. Pela janela, bêbados fazendo barulho, ameaçando brigar, sem trocar um soco sequer. Em seus sonhos, imagens confusas de gigantes e anões, girassóis procurando a Lua Cheia. Adão e Eva. E finalmente entendeu a Fera.
Em um tempo passado infinito, foi Eva que apareceu, ofereceu a maçã, deu ao Homem um gosto diferente que nunca tinha sentido no Paraíso, e com isso provocou a Ira de Deus. Expulso, o Homem sentiu um vazio, muito maior que a costela dele retirada, e maldisse o dia que viu Eva pela primeira vez.
Conheceu a Raiva. Fez um trato com ela. Apesar de estar velho, ainda tinha alguns cartuchos para queimar. Ainda dava para levantar do leito, e ir atrás de Deus. Iria tirar esse assunto todo a limpo, queria respostas, e que fossem satisfatórias.
Um homem com um plano. Ia cair, com certeza. Não se ganha de Deus. Mas ia cair atirando.
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