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O sorriso mais triste


Vovô Luke era uma figura e tanto. Lá pela casa dos setenta e tantos anos, quase oitenta, mantinha uma vida de dar inveja a muito garotão de sessenta. Tinha acumulado o suficiente para viver uma aposentadoria tranquila em seu rancho em Kansas. Passava o dia cuidando dos bichos e da pequena horta que cultivava, sem o menor jeito para a coisa. Era a maior horta de plantas mortas da região.
Um de seus passatempos prediletos era dar conselhos e contar estórias nada politicamente corretas para seus dois netos, já adolescentes. Frequentemente os netos passavam dias por lá, só pra ver as moças indo toda arrumadas para a escola dominical, na capela do reverendo McArthur, e pra ouvir seu avô meio maluco contar o que fazia na idade deles.
Luke era um senhor com o físico bem em forma para sua idade, e despertava olhares cobiçosos das senhoras nos bailes beneficentes da região, onde era presença mais que constante e especial. Havia perdido sua esposa anos atrás, de uma terrível doença, e desde então resolveu não levar mais nada a sério, percebeu o quão efêmera era a vida. 
Não que não tenha aproveitado ... criado em uma fazenda nas cercanias de Yellow River, logo resolveu que aquele lugar era muito pequeno pra ele, foi fazer faculdade longe de casa, rodou o mundo...
Em uma tarde ensolarada dessas, os netos de Luke fuçavam o sótão, quando encontraram vários álbuns empoeirados de fotografias, e começaram a folhear e fazer pouco do jeito que o povo se vestia na época. Luke entrou na brincadeira, foi listando as ex-namoradas que apareciam nas fotos. De repente, fixou o olhar numa delas: era ele, um garotão de seus quase dezoito anos, ou lado de uma garotinha de não mais do que dez. Michelle.

Michelle tinha uma beleza pueril e estonteante. Se anjos existem, eles devem ser como Michelle. Cabelos loiros e levemente encaracolados, olhos cor de mel, voz suave. Michelle era vizinha de Luke, e se afeiçoou por ele quando umas outras garotas da vizinhança estavam fazendo pouco dela, e Luke chegou e começou a paparicá-la. Luke era um pedaço de mau caminho, e as outras garotas morreram de inveja.
Nascia uma bela amizade. Luke adorava crianças, e adotou Michelle como sua irmã mais nova. Já Michelle queria mesmo congelar Luke, para que quando ela ficasse mais velha pudesse namorá-lo. Foi a primeira paixão da menina, e como tal, fadada a despedaçar seu pequeno coração.
No fim daquele verão, Luke sairia da cidade. Tinha ganhado uma bolsa de estudos em uma prestigiosa universidade, ia jogar futebol americano. Foi motivo de orgulho dos pais e, de fato, de quase toda a cidadezinha. Já Michelle, bem, Michelle passou dias enfurnada em casa se acabando em lágrimas.
Sua mãe, uma beata convicta, teve que dar o braço a torcer e, vendo o sofrimento da filha, chamou Luke pra tomar um café da tarde. 
Deixou os dois a sós. Luke explicou que estava indo estudar, que seus jogos iam até passar na TV de vez em quando, que sempre que possível voltaria para visitá-los. Que ela era uma menina sensacional, conheceria muita gente bacana, em breve nem lembraria mais dele.
Ela ouviu tudo com uma fisionomia quase adulta. No final, deu-lhe um abraço bem apertado, afastou-se, e sorriu.
Não um sorriso qualquer. Um sorriso triste, conformado. Um sorriso de cortar o coração, que nunca mais sairia das memórias de Luke.
No dia de sua partida, Michelle não estava lá, a mãe a tinha levado viajar. Eles nunca mais se veriam.

Os netos estranharam quando viram, no rosto do avô, inéditas lágrimas. O experiente senhor encabulou-se, enxugou o rosto e sorriu também. Os meninos perguntaram de Michelle, mas ele não havia tido mais notícias. Só que havia falecido, durante o sono, já há algum tempo. Brincou que era assim mesmo, quando a gente fica velho os amigos vão caindo como moscas. E gargalhou. Nervosamente. E com saudades.

Chamou os meninos pra perto. Dessa vez o conselho não seria nenhuma besteira sexual ou racista. Lembrou os pequenos que tocamos todas as pessoas com quem cruzamos os caminhos, e portanto, devíamos ser os melhores que podemos ser, para aqueles que nos merecem. Dessa forna, podemos deixar sempre ótimas lembranças, e poucos arrependimentos.



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