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Tavares e as linhas de código



Tavares era programador de computadores, como diziam antigamente. Nada de analista programador, arquiteto de sistemas, engenheiro de soluções ou qualquer outro nome com mais glamour. Não conhecia linguagens da moda, frameworks para facilitar a criação de telas, reutilização de código. Era old school, raiz, programava na unha mesmo, linha de código atrás de linha de código.
Não era muito introvertido, muito gordo, não comia à mesa de trabalho, não usava canetas Bic pendurados na camisa de manga curta. Um cara normal, no meio de tantos outros caras normais que trabalhavam lá, cada um em sua minúscula baia.
Um belo dia Tavares pediu demissão. Saiu deixando as portas abertas, não havia brigado com ninguém, apenas recebeu uma proposta melhor. Deixou seus contatos, ainda falou com algumas pessoas mais chegadas por um tempo, mas invariavelmente perdeu o contato com todos, como costuma acontecer.

Não deixou muitas lembranças, nem boas nem ruins.

Anos depois, numa terça-feira bem da sem graça, chegou o e-mail do departamento de RH:

"Nosso ex-colega Tavares faleceu ontem. Deixa mulher e filhos. O velório será hoje no Cemitério da Boa Passagem".

Poucos ainda conheciam o Tavares. Vocês sabem como é esse mercado de TI, alta rotatividade. Ninguém deu muita bola pro comunicado, até que lá do fundo um colega se pronunciou:
- Sabem aquele trecho de código que ninguém mexe, aquele que nunca deu problemas, aquele que partindo de um valor chega em outro, de forma simples e limpa. Foi o Tavares que escreveu,
De fato, anos atrás o Tavares havia bolado um jeito de calcular que ninguém havia pensado antes. Em poucas linhas resolveu o problema, linhas praticamente indecifráveis, mas que tinham lá no cabeçalho o comentário:

/* Função para cálculo do valor bruto, a partir do isolamento da quantidade

Nunca ninguém teve a coragem de alterar a função do Tavares. Versões foram atualizadas, telas remodeladas, mas a função estava sempre lá.

Tendo ouvido a história do colega mais antigo, a molecada mais jovem fez silêncio em reverência. Já tinham ouvido muitos gestores sabichões dizerem que não era nada de mais, álgebra elementar, mas ninguém conseguia explicar ou reproduzir.
Organizaram as caronas, e foram ao velório. Era um dia frio, garoava. Com certeza Deus havia percebido a besteira que fez ao chamar Tavares tão cedo, quantos problemas mundanos poderiam ter sido simplificados, e ficou tão chateado que não se deu ao trabalho de brindar o adeus com um dia mais ensolarado. Dizem as más línguas que Ele até considerou trazer Tavares de volta, mas outra ressurreição iria banalizar demais a coisa.
Um a um, colegas novos e antigos deram os pêsames à viúva, e parabenizaram os filhos pelo pai:
- Uma exemplo de pessoa.
- Um gênio.
- Vocês devem se orgulhar de seu pai. Até hoje ainda ...

Não demorou a chegar uma coroa de flores, daquelas bem vistosas, e uma lápide feita sob encomenda, e em tempo recorde. Dizia:

"Aqui jaz Tavares, o homem que isolou a quantidade"

O resto da semana foi de pesar lá na firma. Aqui e ali, nos monitores de vinte e tantas polegadas, as linhas de código de função do Tavares foram admiradas. E tudo que ele fez foi isolar a quantidade,..

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