Pular para o conteúdo principal

Bedtime story 2


Se existia alguma brincadeira proibida na infância dele, era falar que o fulano morto ia voltar para puxar o pé enquanto estava dormindo. Era falar isso que os pais ficavam loucos, mandavam parar na hora, isso não era coisa que se falasse, era preciso deixar os mortos descansar em paz.
Os pesadelos começaram de uma hora para outra. Era sonho recorrente, em noite de trovoadas. Sentia algo peludo encostando seus pés descobertos, primeiro como um carinho, depois um puxão. Gritava mas não conseguia acordar. Filho único que era, não tinha irmãos mais velhos pra acudir. O sofrimento só acabava com a chegada dos pais. Explicavam que não era nada, apenas o cobertor felpudo, podia voltar a dormir tranquilo. Acendiam as luzes, olhavam debaixo da cama, atrás das cortinas. Na dúvida, dormia com os pais em noites chuvosas.
Naquele ano mudaram de lar, deixaram a casa velha, herança dos avôs, e foram morar em uma casa novinha, recém-construída. E deram um cachorro de presente pro filho, um Akita chamado Gus. Gus virou o companheiro do menino, viviam grudados.
Certo dia brincaram tanto que o menino simplesmente desmaiou na cama. Noite chuvosa, começa a trovoar, e o menino dormindo com o pé descoberto. Gus ainda era filhote, tinha adormecido no corredor da casa. Mas algo o assustou, suas orelhas levantaram em alerta e ele saiu correndo em direção ao quarto do menino. O Akita, que nunca late, dessa vez latia nervosamente. O menino acordou com o barulho e com algo tocando seus pés, e viu o cão latindo em direção ao armário fechado. Mas não teve medo, achou que tinha sido o Gus que passou pela cama. Chamou o cachorro pra dormir na cama com ele, e pegou no sono de novo. Nem percebeu o amigo machucado no pescoço.
- Você viu o filhote espantando a criatura?
- Vi sim, precisamos levá-lo no veterinário amanhã. Ele vai ficar bem.
- Cãozinho corajoso!
- Precisamos contar ao pequeno sobre o armário.
- Pra que? Agora o cachorro irá protegê-lo. Ele não precisa saber.
- Achei que saindo da casa velha esse pesadelo iria acabar.
- Não acaba nunca.
O menino, meio dormindo chegou a escutar a conversa. Mas na manhã seguinte parecia mais um daqueles sonhos que a gente na hora se recorda, mas depois esquece. Não se tocou mais no assunto.
O menino virou homem, casou, teve filhos, mudou de casa.... Seus pais faleceram, os filhos se casaram, saíram de casa, ele ficou viúvo. Mas ele nunca mais deixou de ter um Akita. Todos chamados Gus.
E ele nunca mais dormiu com o pé descoberto.








Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O consumo de sorvete e os afogamentos

Muito cuidado precisa ser tomado ao se analisar pesquisas e manchetes de jornais que associam alguma coisa a outra. Explico-me: quando lemos na internet que, por exemplo, comer vegetais faz a gente viver mais, é preciso ser crítico ao entender como se chegou no resultado, ou se apenas estão querendo chamar sua atenção com a manchete (como eu tentei fazer, inclusive). Quando estudamos duas variáveis, e percebemos que o movimento de uma acompanha o da outra, diz-se que as variáveis são correlacionadas. Por exemplo, em dias de maior número de afogamentos nas praias os vendedores de picolés também faturam mais. Isso quer dizer que sorvetes podem fazer você se afogar? Ou que as pessoas que estão acompanhando o resgate se entretém tomando um picolé? Para esse exemplo, é fácil perceber que em dias quentes tem mais gente nas praias, que tomam mais sorvete, e que também infelizmente acabam se afogando mais. Mas tomem a notícia abaixo: http://www.minhavida.com.br/bem-estar/ma...

O Girassol e a Lua

Se eu fosse Esopo , escreveria algo mais ou menos assim... Era uma vez uma plantação de girassóis, nos confins da Holanda. Todos os dias, seguiam a mesma rotina, acordavam cedo, com o nascer do Sol, e realizavam todas suas atividades diárias. Tiravam água e nutrientes do solo, faziam sua fotossíntese, e giravam. Sempre lá, apontando para o astro rei, desde o amanhecer até que ele se escondesse.  Todos menos um, que preferia a Lua. Baladeiro, dormia o dia todo, pra ficar acordado de noite, na boemia, seguindo a Lua.  No princípio os amigos girassóis se solidarizavam com o companheiro dorminhoco, achavam que era algum tipo de doença ou distúrbio, e davam uma força girando o festeiro em direção do Sol. Até que um dia umas formigas bem das fofoqueiras começaram a fazer futrica, perguntando porque ajudavam o cara que ficava a madrugada toda bagunçando, tocando sambas do Pixinguinha e não deixando ninguém do formigueiro dormir em paz. Pararam de ajudar, e o girassol da...

A Lua - Emily Dickinson

Para um dia de lua cheia, como hoje The Moon by  Emily Dickinson   (1830 – 1886) The moon was but a chin of gold A night or two ago, And now she turns her perfect face Upon the world below. Her forehead is of amplest blond; Her cheek like beryl stone; Her eye unto the summer dew The likest I have known. Her lips of amber never part; But what must be the smile Upon her friend she could bestow Were such her silver will! And what a privilege to be But the remotest star! For certainly her way might pass Beside your twinkling door. Her bonnet is the firmament, The universe her shoe, The stars the trinkets at her belt, Her dimities of blue.