Se existia alguma brincadeira proibida na infância dele, era falar que o fulano morto ia voltar para puxar o pé enquanto estava dormindo. Era falar isso que os pais ficavam loucos, mandavam parar na hora, isso não era coisa que se falasse, era preciso deixar os mortos descansar em paz.
Os pesadelos começaram de uma hora para outra. Era sonho recorrente, em noite de trovoadas. Sentia algo peludo encostando seus pés descobertos, primeiro como um carinho, depois um puxão. Gritava mas não conseguia acordar. Filho único que era, não tinha irmãos mais velhos pra acudir. O sofrimento só acabava com a chegada dos pais. Explicavam que não era nada, apenas o cobertor felpudo, podia voltar a dormir tranquilo. Acendiam as luzes, olhavam debaixo da cama, atrás das cortinas. Na dúvida, dormia com os pais em noites chuvosas.
Naquele ano mudaram de lar, deixaram a casa velha, herança dos avôs, e foram morar em uma casa novinha, recém-construída. E deram um cachorro de presente pro filho, um Akita chamado Gus. Gus virou o companheiro do menino, viviam grudados.
Certo dia brincaram tanto que o menino simplesmente desmaiou na cama. Noite chuvosa, começa a trovoar, e o menino dormindo com o pé descoberto. Gus ainda era filhote, tinha adormecido no corredor da casa. Mas algo o assustou, suas orelhas levantaram em alerta e ele saiu correndo em direção ao quarto do menino. O Akita, que nunca late, dessa vez latia nervosamente. O menino acordou com o barulho e com algo tocando seus pés, e viu o cão latindo em direção ao armário fechado. Mas não teve medo, achou que tinha sido o Gus que passou pela cama. Chamou o cachorro pra dormir na cama com ele, e pegou no sono de novo. Nem percebeu o amigo machucado no pescoço.
- Você viu o filhote espantando a criatura?
- Vi sim, precisamos levá-lo no veterinário amanhã. Ele vai ficar bem.
- Cãozinho corajoso!
- Precisamos contar ao pequeno sobre o armário.
- Pra que? Agora o cachorro irá protegê-lo. Ele não precisa saber.
- Achei que saindo da casa velha esse pesadelo iria acabar.
- Não acaba nunca.
O menino, meio dormindo chegou a escutar a conversa. Mas na manhã seguinte parecia mais um daqueles sonhos que a gente na hora se recorda, mas depois esquece. Não se tocou mais no assunto.
O menino virou homem, casou, teve filhos, mudou de casa.... Seus pais faleceram, os filhos se casaram, saíram de casa, ele ficou viúvo. Mas ele nunca mais deixou de ter um Akita. Todos chamados Gus.
E ele nunca mais dormiu com o pé descoberto.
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